A Nova Lei do Ventre Livre

Art. 128. Não há crime de aborto:

 I – se houver risco à vida ou à saúde da gestante;

 II – se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida;

 III – se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; ou

IV – se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.

Para o leigo, que eventualmente terá contato com os artigos da proposta de alteração do Código Penal, a percepção é a de que nada mudou no que tange a figura do aborto. Somos contra, mas há algumas hipóteses bem específicas e objetivas em que a lei permite tal prática. Já para o intérprete mais atencioso, o tímido inciso IV representa uma verdadeira revolução.

Ele é uma possibilidade, juridicamente permitida, da mulher que não apresentar condições psicológicas (há algo mais subjetivo do que “condições psicológicas”?) poder realizar um aborto de forma legal e segura dentro da estrutura de nosso sistema de saúde. Como na grande maioria das situações que envolvem o aborto há algum comprometimento da condição psicológica da gestante (fora quaisquer outras razões, não nos afastemos da ideia de que ela estaria disposta a livrar-se o filho indesejado) esta poderá realizar o aborto após avaliação médica.

A crítica fácil que tem sido feita ao artigo é a de que no seu quarto inciso estaria prevista a hipótese de abortamento como uma opção para a gestante, e que isso transformaria automaticamente o Brasil em um país que considera “o aborto” uma prática legal.  Ou seja, seria a tão temida “legalização do aborto”. E mais, que este golpe está sendo tramado às escondidas – visto que o brasileiro médio é “contra o aborto” e que nossa Constituição garante a proteção à vida em suas cláusulas pétreas.

Naturalmente uma questão desta magnitude não deve passar a compor nosso ordenamento jurídico por acaso, ou porque ninguém reparou no que queria dizer. Todavia, a generalização dos termos e a simplificação desta discussão carregam consigo a semente do maniqueísmo necessário para a criação do alarmismo – e, por conseguinte, a manutenção das coisas como estão. Esta abordagem é tão vastamente difundida que está gravada até mesmo na formulação da questão: “Aborto, você é contra ou a favor?”. É sempre esta a pergunta. E temos apenas duas possibilidades de respostas possíveis: se você não for contra, é “a favor”.

Deparei-me recentemente com esta questão em um debate acadêmico e, mesmo com minhas convicções bem ajustadas, me senti constrangida quando disse: sou “a favor”. Por óbvio que no mundo acadêmico há o entendimento de que falar: “Sou a favor” é o mesmo que dizer: “Sou a favor da descriminalização”. Mas, ainda assim, é uma afirmação constrangedora. Fora dos muros da academia soa muito pior. Sob os olhos da sociedade, instantaneamente nos equiparamos à condição de assassinos que determinam que os indesejáveis e indefesos devem morrer. Ser a favor é não preservar a vida. Aborto é contra a vida.

O entendimento de nossa sociedade é claro. Como não sabemos “quando” começa a vida não podemos determinar o seu fim. Portanto, pune-se tudo o que for contrário a isso. “In dubio pro Vita”.  E esse conceito é refletido na lei.

Não precisamos mencionar os já tão repisados fatores sociais, culturais ou econômicos que fazem com que as mulheres continuem a ser protagonistas de gestações não programadas e que acabam por se transformar em um grande número de abortos induzidos. Até porque os indicadores evidenciam que, mesmo com justificativas ou razões distintas, a conduta ocorre em todas as classes sociais; e a figura do aborto consensual sempre existiu, em maior ou menor escala, ao longo da história.

O que vemos na prática é que o aborto – que é até democrático nas suas raízes, não sendo exclusivo para determinada classe social – nas suas consequências resulta em situações diametralmente opostas. Para os segmentos da sociedade mais abastados ele é uma escolha (mesmo não sendo legal); para os menos abastados ele impõe sanções severas. Atualmente, no Brasil, o aborto inseguro – como ficou conhecido aquele que é realizado por meio de métodos caseiros ou inapropriados, é a quarta maior causa de mortes entre as gestantes.

Pode parecer irônico, mas enquanto as condições socioeconômicas não forem idênticas para todas as mulheres – tanto na educação preventiva quanto na remediação segura da gestação indesejável, não haverá igualdade social sequer no simples crime do abortamento. Isto porque, quem corre o risco de morte é a gestante pobre, que pratica o aborto das formas mais bárbaras e rudimentares. Quem eventualmente responde penalmente pelo crime de aborto é a gestante pobre, que ingressa no sistema de saúde público – com as desastrosas sequelas do aborto inseguro – e é denunciada pelo corpo médico ou funcionários das unidades de saúde às autoridades. É para proteger esta segunda mulher que o inciso IV se presta.

Da forma que temos conduzido esta questão produzimos duas vítimas no aborto, mas somente reconhecemos uma delas. E mais uma vez vemos problemas sociais não resolvidos sendo contornados ou maquiados por sanções penais. Não prevenimos as causas, mas punimos as consequências. Embora a legislação brasileira adote o princípio do “Ne bis in idem” a dupla punição pela mesma conduta é o que ocorre de maneira indireta no caso da gravidez indesejada. Pune-se a mulher pobre, alijando-a das condições que possibilitariam escolhas seguras para sua vida – no caso, escolher o momento e a condição da gravidez. Quando engravida ela é punida novamente, sendo obrigada a ter o filho ou a arriscar a própria vida em um aborto inseguro.

A realidade demonstra o que a legislação ignora. A mulher que, por qualquer razão que seja, decidiu-se pelo aborto fará o aborto, com ou sem o consentimento legal. A diferença é que ela poderá fazer isso de uma forma segura ou não. Ignorar as implicações sociais e seus reflexos, mantendo a legislação desta forma, passa a não ser mais um clamor pela vida, mas, tão somente, um castigo; uma lição para quem aborta. Ser o aborto um fato típico não desestimula a sua prática. É, pelo contrário, um desserviço social que cria um problema de saúde pública e de ameaça a direitos individuais.

É evidente – e nenhum entusiasta da descriminalização é capaz de pensar diferente – que qualquer aborto é uma forma de violência. Mas praticar ou não esta conduta não é uma questão de legalidade, e sim de moral e liberdade de convicções (diferente de moralismo). Este juízo não pode ser público ou penal; pelo contrário, é interno e individual, e não deve ser regido por dogmas religiosos ou falso moralismo à brasileira.

Nunca fomos um Estado que conferiu legalidade à prática do aborto, nem por isso nossos índices relacionados a abortos clandestinos diminuem. A pretexto de proteger a vida incondicionalmente, estamos convivendo com a morte – certa, no caso do produto da concepção, e recorrente, no caso da gestante pobre. Mas convive-se bem com isso, desde que esta morte não ocorra em nossos lares e esteja maquiada por uma legislação que estampe nossos “bons costumes”. Não por acaso, os defensores mais ferrenhos da permanência desta legislação pertencem aos mesmos grupos que se revezam em debates como o da cura gay; do recrudescimento das leis penais, entre outros. É um grupo que, em sua maioria, almeja um Estado que resolva suas questões por meio da força, que não dialogue sobre os eventuais divergências ideológicas, apenas criando uma punição sob medida para cada uma delas.

A prova de que esta questão, no Brasil, vem sendo tratada essencialmente no campo ideológico, é que a eleição da Presidenta Dilma só foi decidida no momento em que ela afirmou a sua postura contrária à descriminalização – em resposta às cartas de representantes da CNBB. O dado curioso é que aquele que minimamente conhece a trajetória política da presidenta e seus ideais (e, sobretudo, seu contato com o ativismo político latino-americano) consideraria plausível (e até mesmo natural) a hipótese de a Presidenta Dilma ser convicta de que o tema do aborto devesse ser uma escolha pessoal da mulher. Todavia, esta resposta parecer incoerente com sua personalidade era irrelevante, desde que o discurso fosse adequado às necessidades do conservadorismo ideológico. Mais uma vez ignoramos os fatos, desde que se mantenha o discurso.

Este caso soa esquisito quando lembramos que o Brasil é um estado laico. Todavia, fica menos esquisito quando lembramos que a CNBB por diversas vezes se colocou contrária à campanha de prevenção às DSTs  e a distribuição de preservativos durante o Carnaval. Preservam-se os dogmas cristãos, mesmo que se perca a Cristandade.

O reacionário ou fundamentalista de plantão pega carona na justificativa religiosa para criar o alarmismo pela instituição do caos e, desta forma, manter o status quo bem lubrificado e de fácil administração. Neste caso, não há justificativa plausível.

Não estamos com isso tirando a importância da religião na vida da sociedade, ou tratando-a como um entrave ao desenvolvimento social. A Igreja Católica, e demais Igrejas Protestantes, estão dentro do seu papel. O que estamos dizendo é que os valores religiosos, que possuem seus contornos absolutos, pertencem ao campo da Religião, não ao campo do Direito. E que o Direito deve pautar-se por fortes valores morais, mas que esses valores não podem engessar a razão; não podem querer para si o caráter absoluto de um dogma. O Princípio da Harmonização dos Direitos deve ser trazido com tenacidade espartana para os debates em sociedade, sob a pena de criarmos um complexo de normas bom para um mundo ideal, não para pessoas reais. A democracia depende disso.

O tema é tão delicado que mesmo quem consegue chegar à conclusão de que a descriminalização do aborto é necessária – em nome da preservação da vida – não consegue afastar o desconforto de tal postura. Este desconforto é necessário e demonstra nossa lucidez e sensibilidade.

No entanto, como alento para tal desconforto, encontramos o recente exemplo dado pelo Uruguai, que tradicionalmente assume papel de vanguarda nas mudanças sociais e que, há um ano, reformou sua lei que trata do aborto em um formato parecido com aquele proposto pelo anteprojeto do Código Penal.  A eficácia social da norma se mostra absoluta, pois o índice de mortes maternas oriundas de abortos induzidos caiu para zero desde a sua aprovação.

Este resultado, que traz a melhor resposta para as críticas, consegue ser ainda mais favorável. É redentor observar que, desde a reforma da lei, o número de abortos realizados vem caindo no país. Com o novo olhar adotado sobre a proteção da mulher e seus direitos individuais; e uma postura mais efetiva nos programas de prevenção e políticas de controle de natalidade, o número de gestações indesejáveis está diminuindo.  Ou seja, há o aumento efetivo da preservação à vida (da mãe e a do eventual produto da concepção).

Temos que ampliar nosso campo de visão, reconhecendo todos os atores e elementos desta questão. Temos que evoluir na nossa forma de analisar, partindo do maniqueísmo passional e absoluto para um pensamento racional e relativista. Há, sim, espaço para nos reelaborarmos como indivíduos e sociedade que, embora contrária à prática aborto, seja favorável à sua descriminalização. Essas vertentes não se incompatibilizam como parece de início.

O aborto continua sendo o que ele é em sua essência, uma conduta extrema, que deve ser evitada de todas as formas e jamais banalizada. O que se pretende não é criar uma licença ou um incentivou ao aborto; não é um prêmio a uma prática libertina, é somente o reconhecimento que se deve reformar uma norma que não cumpre com aquilo a que se presta.

Manter o aborto como um crime faz com continuemos desprotegendo a vida. Descriminalizando, teremos uma chance real de preservá-la.

Na hora da verdade, de que lado você vai estar?

Alethea Lemos Neves.

                                                                                                                                                                        São Paulo, Novembro de 2013.

 

Maioridade Penal  –  A guerra é contra o Senso Comum

 

                                        Diz a lei que o Direito do Menor é tutelado pela Família, é apoiado pela Comunidade, é respaldado pela Sociedade e é

                                        assegurado Primeiramente pelo Poder Público (que na prática não assegura ninguém).

                                        A Família está falida, a Comunidade fragmentada, a Sociedade descrente de suas instituições e o Poder Público talvez

                                        fique isento de sua responsabilidade nesta quadrilha porque podem diminuir a Maioridade Penal, tema que nem tinha

                                         entrado na história.

                                                                                            Inspirado no poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade

 

Essa história, que já é antiga, repete-se cada vez que uma infração de características violentas tem como agente um menor de idade. É quando a sociedade, por meio de sua voz mais audível - a da classe média - abandona a sua apatia costumeira para bradar contrariamente à maioridade penal a partir dos dezoito anos.

O argumento de validade deste grito é a guerra contra a criminalidade, a violência e a delinquência juvenil, mas a verdadeira guerra em questão deverá ser travada pela Razão e contra o Senso Comum.

Nas últimas semanas esta polêmica tomou contornos tão dramáticos que dados falsos ou manipulados sobre a maioridade penal passaram a circular pela internet, fazendo o leigo crer que o Brasil é atrasado, paternalista ou provinciano, no tocante à responsabilização penal, e que países desenvolvidos “são tão desenvolvidos” que até suas responsabilizações penais começam muito mais cedo. A lógica do senso comum acaba por criar a justificativa para uma prática velha conhecida, qual seja, importar fórmulas prontas ou estrangeiras para problemas que possuem raízes sociais e jurídicas diferentes.

E tais equívocos, tão cuidadosamente fomentados, ganham corpo se analisados distantes do entendimento real sobre o que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. É tarefa inócua discutir a diminuição de uma garantia ou direito fundamental analisando a questão como parte.  Não podemos isolar esta ou aquela norma do todo para achar que ela não cumpre bem o seu papel, sobretudo uma norma basilar. Devemos compreender a maioridade penal dentro do seu contexto, sistematicamente e também no seu aspecto prático.

Proteção Integral e a Teia das Responsabilizações – defesa, promoção e garantia dos direitos fundamentais

O princípio norteador do Estatuto é o da Proteção Integral. Às crianças e adolescentes são garantidos os mesmos direitos fundamentais dos adultos, mas essas garantias devem ser oferecidas aos jovens com preferência, primazia e prioridade, reconhecendo sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Para que esta característica especial de prioridade absoluta seja assegurada é estabelecida a rede de responsáveis: a Família, a Comunidade, a Sociedade e o Estado – este último prioritariamente. Há a difusão da ideia de que a responsabilidade pelo menor é somente Parental, mas o principal ente responsável pela consecução dos direitos da criança e do adolescente é o Estado, devendo este apoiar a família; e neste ponto o equívoco do senso comum se inicia.

Quando a família falha na proteção ou condução do jovem, o senso comum não entende os próximos responsáveis pelo jovem na cadeia, e, desta forma, também não percebe o seu próprio papel. O que percebemos é, no máximo, um ou outro aspecto da solidariedade humana e uma mescla indistinta de compadecimento e assistencialismo, mas responsabilidade, propriamente dita, não.

A fantasia de que os direitos fundamentais são apenas ideais que estão no papel; um sonho que talvez um dia seja alcançado, ou mais um engodo (como tantos outros) patrocinado pelo Estado é o que distancia a sociedade da realidade de que os direitos fundamentais ou são cumpridos ou violados, não há meio termo nesta matéria. E que, em se tratando dos direitos previstos no ECA, a Sociedade é também um ente diretamente responsável -  pois até mesmo por meio da omissão de não reconhecer esses direitos e não cobrar a sua concretização pelo Estado ela pode ser responsabilizada.

Ou seja, a violência do menor infrator é o resultado da não realização dos direitos e garantias fundamentais que, se realizados, não exporiam o menor às condições de marginalidade. A cadeia de fatores é simples, mas difícil de ser tolerada.

Todo o sistema do ECA se sustenta e se justifica pela tentativa desesperada de que o jovem permaneça junto à sua família de origem, na sua comunidade, inserido em sociedade. Isto é notado desde as medidas protetivas às socioeducativas. Não pelo mesmo fundamento, mas ainda assim em harmonia, todo o nosso sistema penal caminha neste mesmo sentido.

E é este outro ponto em que a sociedade, por desconhecimento, diverge de sua legislação pátria – naturalmente aqui não está em apreciação a aplicação prática desta legislação. O entendimento da sociedade acerca das penas não ultrapassa o seu Caráter Retributivo, algumas vezes chegando ao da Prevenção Geral e Especial e, somente em raríssimas exceções, à sua qualidade Ressocializadora.  Se o sistema penal, tal como está, cumpre ou não estes objetivos não é a questão em pauta; o que interessa é que a sociedade, de um modo geral, sequer percebe que estas eram as aspirações do legislador e o fundamento do próprio sistema legislativo. Por esta razão falas tão bem orquestradas e propagadas pelos veículos de comunicação difundem a ideia de que as leis são fracas e que acobertam os criminosos.

Qual será então o entendimento desta sociedade para uma série de medidas que, embora sancionatórias, tendam a deixar o menor (ainda que infrator) o mais próximo possível do convívio familiar e longe das instituições (que fatalmente o corromperiam mais e o fariam iniciar o rosário de múltiplas internações, trampolim para o crime na idade adulta)? É evidente a resposta, a sociedade entende isso como impunidade!

Na prática, as medidas socioeducativas também não têm dado conta de conter a marginalidade do jovem. No entanto, a falha deste sistema é essencialmente operacional, e não legislativa!

O grito da Classe Média

No fundo essa indignação carrega consigo a verdade de que a sociedade não compreende ou não acredita na função ressocializadora das penas aplicáveis em sua legislação, e também não entende ou não diferencia as competências dos Poderes de seu Estado. Fora a certeza da impunidade – real e concreta, fruto de uma máquina estatal que não dá conta de sua demanda - ainda fica a sensação de que a pena deva ser concentrada no seu aspecto retributivo (tendo em vista que a vingança particular não é cabível). Não se sentindo justiçada, ela não sabe sequer a quem se dirigir para cobrar mudanças.

Este livre pensar da sociedade, que se sustenta à base do desconhecimento jurídico da causa que tão veementemente postula, tem sido cuidadosamente alimentado por diversos setores e poderes, estes setores, sim, detentores do conhecimento.

É menor ou maior penal? - Depende, o jovem é autor ou vítima?

O sistema de aferição da maioridade penal brasileiro possui caráter exclusivamente biológico, não há o componente subjetivo. O conceito é o de que até os dezoito anos o jovem não tem entendimento sobre o caráter delituoso de determinado ato, nem plena capacidade de determinar-se de acordo com este entendimento. Por esta razão, até os dezoito anos completos - quando sai da adolescência - ele é inimputável penalmente.

Mas, embora inimputável penalmente, há responsabilização diferenciada prevista pelo ECA, pois a partir dos 12 anos - quando ingressa na adolescência - o jovem passa a ser responsável por atos análogos a crimes e contravenções e sofre, em razão disso, medidas sancionatórias - ainda que não advindas do Código Penal. Ou seja, mais um grande equívoco do senso comum, pois há responsabilização por atos delituosos no ECA. E assim é em outros países, não é uma exclusividade Brasileira, há uma espécie atenuada de responsabilização.  

Interessante recordar que durante a Idade Média, na Europa, usava-se um mecanismo peculiar para se aferir o discernimento do jovem para a aplicação de uma sanção própria para adultos ou outra medida de caráter protetivo. Oferecia-se ao jovem em questão uma maçã e uma moeda. O jovem que optasse pela moeda seria tratado como se fosse adulto.

Os projetos de lei que buscam a diminuição da maioridade penal não querem ressuscitar a “Maçã de Lubecca”. Todavia, seus defensores justificam-se por meio de mecanismos tão disparatados quanto:

Se o jovem de 16 anos tem capacidade de decidir o destino da nação por meio do voto, ele também tem capacidade para responder penalmente por seus atos.” Este argumento é muito interessante se observado levando-se em conta as eleições em que São Paulo elegeu para o Congresso Nacional nada mais nada menos que um humorista da televisão na pessoa de seu personagem (nada contra o ele, que tem feito o seu papel como Deputado; é somente para enriquecer a tese que utilizamos o símbolo).

Em um país de pouca informação ou orientação política, mas voto obrigatório, até quem tem a capacidade eleitoral outorgada pela lei não está obrigatoriamente capacitado pela própria consciência política ou entendimento prático para decidir o destino da nação. E não foram apenas os eleitores entre 16 e 18 anos que fizeram a piada de eleger um palhaço da TV para Deputado! A lei dizer que o jovem pode votar não confere automaticamente capacidade de entendimento, nem tampouco a demonstra.

A violência e crueldade com que os recentes delitos foram praticados pelos jovens comprovam a perda da inocência e o pleno discernimento do que é o certo do errado. O aumento da violência e crueldade na prática dos delitos não tem sido uma exclusividade dos delinquentes juvenis. A criminalidade, como um todo, aumenta enquanto também acentuam-se seus aspectos de crueldade e brutalidade. Ou seja, embora seja triste admitir, esses alarmantes índices refletem o embrutecimento de nossa sociedade; refletem os traços de selvageria de nossos dias e a banalização de nossos valores, não o desenvolvimento acelerado de nossos filhos! A não compreender isto é preferível oferecer a maçã e a moeda; quem sabe algum jovem com fome opte pela maçã.

Há ainda o argumento de que a enorme oferta da informação e o desenvolvimento maior a cada geração que passa faria do jovem atual um indivíduo muito diferente do jovem de 1940, a quem esta idade penal fora dirigida. Iniciar precocemente a vida sexual, gozar de maior liberdade e autonomia ou consumir substâncias entorpecentes não implicam em um salto de amadurecimento; são apenas características de nossos tempos. E ainda que admitamos que o jovem antes dos 18 anos já tenha plena capacidade de entendimento, ele tem total capacidade de autodeterminação? E, em última análise, ele será melhor punido pelo CP do que seria pelo ECA por seus atos?

Isolando “OS PORQUÊS

Mas por que nós estamos debatendo a diminuição da Maioridade Penal?

Porque a responsabilização penal do menor diminuiria a criminalidade, coibindo a prática do delito.

Isso não é real pela mesma razão que o criminoso maior de idade - plenamente imputável - não deixa de praticar suas infrações penais porque existe tipificação penal ou responsabilização. Sobretudo o criminoso habitual, que faz do delito seu meio de vida. O mesmo vale para o menor, que é responsabilizado por meio de Medida Socioeducativa quando comete conduta análoga a crime. Na prática, para esses crimes dos quais as estatísticas tratam, uma lei no papel mais dura não tem sido suficiente para assegurar a paz social; nada mudaria. Questionar o poder de intimidação do jovem alegando a benevolência do ECA é um equívoco.

Porque a punição penal será mais eficaz, e cumprirá melhor o seu papel como sanção.

Não, o sistema prisional saturado (fora não ter como absorver o jovem infrator) não vem conseguindo ao longo do tempo colocar em prática as próprias previsões legais a ele destinadas e, por esta razão, impossibilita o cumprimento do caráter ressocializador das penas – tanto no regime fechado quanto nos abertos. A legislação penal pátria busca com seus mecanismos próprios todas as possibilidades de sanção que afastem o cárcere, justamente por entender os aspectos degradantes e destrutivos da privação da liberdade.

Na prática cotidiana da aplicação das penas, realizada pelos operadores do direito, esta busca deve ser ainda mais séria; visto que a realidade do sistema prisional, diferentemente de ressocializar, acentua as piores características do indivíduo, quando este não acaba sendo recrutado por uma facção criminosa. A pena que deveria restringir o direito de ir e vir do condenado acaba por violar também a sua dignidade de forma indelével. Enquanto houver uma possibilidade de correção do jovem infrator e a recondução ao meio social, temos que evitar a punição dentro do sistema penal.

Porque a diminuição da maioridade diminuirá a impunidade que cerca os delitos praticados por inimputáveis.

Não, em primeiro lugar porque o ECA responsabiliza o adolescente de um modo peculiar e, em segundo lugar, porque a mudança na legislação não acompanhará uma ampliação da capacidade da Máquina Estatal (policial, judiciária, administrativa...) para investigar, punir e aplicar as leis existentes conforme elas foram idealizadas; pois somente isto diminuiria a impunidade que experimentamos. Alterando a maioridade somente mudaríamos a guarda da responsabilização pela impunidade a respeito dos crimes praticados por jovens; deixaria o ECA e recairia sobre o CP.

Um verdadeiro porquê é que o Estado não terá uma solução para o problema da violência praticada pelo menor enquanto não assegurar os direitos e as garantias fundamentais previstos pela Lei com prioridade, preferência e primazia. Enquanto isso não ocorre, cada vez que a classe média clama por uma solução esse debate é reiniciado.  

Outro verdadeiro porquê é que, buscando qualquer lampejo do crédito perdido em meio ao lodaçal de descrença, as alas mais conservadoras da política tentam dar à sociedade uma resposta rápida a uma necessidade concreta, mesmo que seja a resposta errada e passional e que somente temporariamente satisfaça à sociedade. É uma medida eleitoreira, mas cumpre bem o seu papel. Ainda que alteração não vingue poderá alavancar a trajetória política de quem embarcou na viagem.

Outro excelente motivo é que falar de menor infrator e sua violência desmedida vende jornal, revista e dá uma audiência enorme! As estatísticas dão conta que somente 1% dos atos delituosos praticados hoje redundam em sentença penal condenatória. Somente 10% das infrações cometidas contra a sociedade em geral são atos infracionais praticados por jovens. Mas dizer isto é anticlimático! Então, esqueçamos os fatos e nos concentremos no maniqueísmo!

Por fim, sejamos razoáveis, de qual jovem nós estamos tratando? A que massa de jovens importará a diminuição da Maioridade?

Estamos falando, desde o início do texto, do jovem das classes mais favorecidas, que esporadicamente aparece na mídia envolvido em uma barbaridade? Ou do jovem filho da miséria, drogas e violência, que todo os dias está nas ruas, na TV e nos jornais, sendo mostrado realizando toda a sorte de delitos - dos famélicos aos hediondos - com a naturalidade de quem já nasceu pronto para isso?

Menor Infrator - O problema não é meu, não é seu e não é de ninguém!

É importante salientar o papel confuso que o menor delinquente possui perante a sociedade. Pela idade são crianças ou adolescentes e, por essa razão, como um filho, precisam de proteção e cuidado. No entanto, eles cometem crimes com a mesma violência que os adultos. Neste ponto, diferentemente daquele que é filho, não há quem se responsabilize por seus atos.

Ocorre então um fenômeno que assemelha-se a uma emancipação penal velada (até porque o senso comum não conhece a diferença de tratamento dada à criança e o adolescente pelo ECA, a lei simplesmente acoberta seus crimes!). Não se fala abertamente nisso, mas ela está lá. Para este jovem a sociedade não vê horizonte. Logo, como será a punição, se ela reabilitará ou não o jovem, são temas fora de questão.  Alguém deve se responsabilizar, se não há quem o faça, deve o jovem responder como se fosse adulto. Ou seja, se você tem um responsável o ECA pode te proteger, se não tem o CP deveria te punir.

A rede dos quatro entes responsáveis trata o jovem marginalizado como a um “cachorro de quintal mantido preso à coleira”. Nos relacionamos o mínimo possível com ele. Quando lembramos, e sempre a distância, jogamos um pouco de alimento. Mas um dia ele consegue se soltar e ataca a todos que cruzam o seu caminho com uma fúria monstruosa. Neste momento falamos de impunidade e nos sentimos injustiçados.

A figura do “cachorro de quintal" é fictícia - até porque atualmente o cachorro ganhou outro status dentro das famílias brasileiras. O menor não, este continua o mesmo.

A omissão dos entes responsáveis pelos direitos basilares adultera a natureza do jovem, e quando este jovem em nada mais se assemelha a uma criança ou adolescente fazemos dele adulto - no sentido de ter que responder por seus atos na posição de autor - quando na realidade, em última análise, ele é vítima; não de seus atos, mas de um processo de exclusão e injustiça social irresistíveis.

A justificativa da Proteção

Se a sociedade se sente frustrada com a Legislação que a representa, poderíamos imaginar que a Legislação também se sentisse frustrada com a Sociedade que deveria representar. Oriunda de um longo e doloroso processo de redemocratização, mesmo com suas disparidades e enganos, nossa Constituição buscou amarrar ao máximo todas as garantias e direitos fundamentais no intuito de jamais tornar a ver estes direitos e liberdades sendo novamente violados. Esta foi uma postura cautelosa do legislador original. Pode atualmente ser considerada um pouco exagerada, mas sua motivação foi bem intencionada.

É de causar estranheza o fato de a sociedade ainda não ter percebido que, para serem assegurados os direitos de cada indivíduo, terão que ser assegurados os direitos de todos, até o de seus algozes. Exemplo disso é a crítica fácil que é feita a respeito das Comissões de Direitos Humanos quando partem na defesa de condenados; como se a condenação não fosse apenas a pena imposta, carecendo da degradação completa do apenado.  Nesta esteira, o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei includente e democrática, recebe a crítica de ser benevolente e paternalista.

Mas, para responder aos anseios retributivos da sociedade, devem os Operadores do Direito retroceder na confecção e interpretação das leis ou será a sociedade quem deve evoluir no sentido de ampliar sua percepção e entendimento sobre a própria legislação, não sendo meramente conduzida no debate?

Então este ECA, resultado de uma evolução em termos de legislação - que trata a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e não como objeto de intervenção do mundo adulto - é quem deve retroceder à época do Código de Menores e voltar a adotar a política da Situação Irregular? Ou devem os entes Responsáveis pela consecução dos direitos apregoados pelo estatuto tomarem para si o desafio de colocá-lo em prática?

Em mais de 20 anos de vigência do ECA  o complexo de direitos e garantias previstas está muito distante de nossa realidade. Tão distante que, na falta dessas garantias, mais uma geração de jovens foi vítima da omissão e perdida para a violência.

Antes de sofrer qualquer alteração em suas bases, sob a acusação de sua ineficácia, o ECA deve primeiramente ser posto em prática nos aspectos de suas garantias, que assegurariam que não fossem aplicadas tão largamente as suas sanções. Não podemos julgar ineficiente uma legislação que tem seus pilares enfraquecidos com o seu não cumprimento na plenitude.

Este texto não se coloca contrário ou favorável à redução da maioridade penal. Simplesmente busca demonstrar que a mudança não trará o benefício pretendido na redução da criminalidade e trará grande prejuízo para o jovem.

A sociedade pode posteriormente verificar que sim, para os dias atuais a redução seja proveitosa, mas deve antes disso entender as verdadeiras implicações envolvidas. Devemos aproveitar o debate, e o desconforto causado pelo tema, para tratarmos da lei, mas, primordialmente, para voltarmos as nossas atenções no sentido de cobrar do Estado ações concretas que façam com que cada vez menos jovens sejam submetidos e nos submetam à violência.

Ressalva Final

Eu não comporia este texto se um ente meu tivesse sido vítima de grande violência provocada por um menor infrator. Nesta situação hipotética eu certamente teria outra visão sobre o jovem delinquente.

Quem passa pela dor de ser vítima da violência - em qualquer uma de suas formas - tem irrestrita licença para ser parcial, irracional ou até mesmo insano diante de um argumento contrário ao seu.  Em situação semelhante qualquer um de nós talvez se esquecesse de tudo em que acreditou anteriormente, e fosse querer a qualquer custo obter qualquer coisa que se assemelhasse à vingança; mesmo que tivesse - por força de nosso pacto social - que se contentar com a Justiça.

                                                                                                                                                                                Alethea Lemos Neves.

 

O Momento da Maioridade

Pensando o nosso ordenamento jurídico como um processo em curso, um sistema aberto passível de ser reconstruído de acordo com as necessidades da sociedade, somos convidados, enquanto sociedade, a refletirmos quanto a determinados pontos:

Estamos discutindo a Maioridade Penal para aperfeiçoar nosso ordenamento jurídico diante dos fatos sociais e valores de nosso tempo? Ou estamos querendo a diminuição da maioridade penal como forma de conter a escalada da violência?

Essas questões foram meros exemplos, outras poderiam ser formuladas e que acrescentariam luzes ao debate – que, aliás, tem demonstrado ter as suas motivações analisadas de forma equivocada ou confusa. Todavia, os problemas implicados nestas respostas podem trazer a discussão até um nível de consciência e construção ou a um terrível equívoco, tanto nos objetivos como nos resultados.

O problema do menor com a lei, para esta análise, inicia-se em como o menor está na lei. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 15°. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Grifo nosso.

É evidente a motivação do legislador na confecção do ECA. Reconhecendo a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, criou uma teia composta por quatro entes responsáveis por seus direitos.  Enquanto o jovem não se mostra um problema para a sociedade, se os seus direitos são cumpridos ou não, não chega a ser um problema. No entanto, a partir do ponto em que o jovem passa a delinquir, o ECA costuma ser visto com desconfiança por boa parcela da sociedade.

Por via de regra é fácil identificar, dentre os caminhos possíveis, quais deverão ser tomados para assegurar o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente que possui proteção parental ou figura de autoridade interessada no bem deste menor. Podemos melhorar a escola; endurecer na questão da autoridade não exercida ou mal exercida; podemos tomar emprestada a autoridade impessoal do Estado quando for necessário, dentre outras.

Para este caso a cadeia de responsabilizações do ECA é algo inteligível. As medidas são protetivas porque a fase ainda requer proteção e orientação para que, desta forma, o menor alcance o pleno desenvolvimento.

Mas quando falamos do menor que não possui a proteção parental ou esta se mostra ineficiente, a situação fica diferente, pois estes, fora toda a sorte de privações materiais, não possuem a fonte de proteção, orientação e autoridade necessária para o desenvolvimento humano. Não havendo este elemento, as medidas protetivas e socioeducativas podem tornar-se ineficazes, sobretudo dentro do molde em que são aplicadas.

A inserção dos quatro entes responsáveis foi a forma que o legislador usou para tentar solucionar um problema complexo de maneira simples. Dividiu com todos a responsabilidade que aparentemente não é de ninguém. Mas, como a solução foi meramente teórica, pois as garantias fundamentais continuam não garantidas, o problema permaneceu real e colide conosco todos os dias. Dizemos “aparentemente” porque em uma ordem social que não oferece condições e recursos iguais, para alguns terem muito é necessário que muitos tenham muito pouco.

Por não se reconhecer diretamente responsável, a sociedade não entende como sendo seu este papel. A lei que vincula a sociedade e a comunidade ao problema do menor parece um tanto deslocada da realidade; e fica ainda mais deslocada diante da percepção de que o Direito não possui mecanismos para debelar problemas de ordem social; transformando a responsabilização outorgada pelo ECA em uma espécie imposição feita pelo legislador para que seu sistema de inspiração humanística faça sentido.

Para esta responsabilização fazer sentido deveria haver uma conscientização maciça da sociedade e um total enfrentamento da questão. Enquanto isso não ocorre tudo soa como uma elucubração abstrata perante uma sociedade norteada pelo individualismo; que sequer se relaciona como “comunidade”, e sim como “aglomerado”.

É importante ressaltar o contexto político-ideológico em que esta discussão se insere.

Desde o início do processo de redemocratização, o Brasil vem adotando um discurso de cunho humanitário, protetivo dos direitos humanos, e que cumpre um papel muito bem visto no contexto internacional. Fora esses impulsos terem suas raízes na própria sociedade brasileira, há também interesses econômicos e políticos para que essa imagem siga inabalada – independentemente da realidade nossa de cada dia. Também por esta razão a discussão sobre o tema da maioridade não é proposta pelo Governo.

Mas é evidente que deixar o delinquente delinquindo – mesmo sendo a parte mais frágil nesta equação – sem conseguirmos que as sanções impostas coloquem termo e o conduzam a uma vida saudável e produtiva, em virtude de um problema antigo que não vem sendo tratado por meio de atitudes práticas – é que não podemos mais.

Podemos, como sociedade que se reelabora e que reconhece os próprios desafios, discutir abertamente com qual idade nossos filhos passam a entender plenamente seus atos e a se ordenarem de acordo com isso. Isso não é brutal, nem tampouco desumano. Mas falar em diminuir a maioridade penal quando pensamos no jovem que não teve qualquer oportunidade, acaba por ser a confissão de culpa de nosso problema social; e que nosso sistema jurídico estaria meramente punindo alguém que ainda deveria estar se desenvolvendo.

Se estamos discutindo a maioridade como uma forma de aperfeiçoamento do nosso direito pátrio, o debate é oportuno. É legítimo questionar as motivações e fundamentos de validade do Direito a que estamos vinculados. Entretanto, em todo o mundo há lugares com idades penais diversas e os índices de delinquência variam indistintamente. Logo, a diminuição da maioridade não é um sucedâneo para a diminuição da violência ou criminalidade.

Como o momento que enseja o debate sobre a maioridade penal é de clamor referente à violência, é necessário que reflitamos sobre as bases que sustentam o nosso Direito Penal.

A tendência humanitária do nosso ordenamento atualmente é um sentimento do brasileiro ou uma imposição político-ideológica?

O Direito Penal deve ter sua função precípua na redução da criminalidade ou na punição dos criminosos?

Este é um dilema dos mais sérios, pois em um extremo temos um mundo ideal do ordenamento jurídico em um equilíbrio harmônico e, no outro, a prática cotidiana das normas sendo aplicadas às avessas.

Mesmo defasado e carecendo de reformas, de um lado temos a beleza de um sistema de normas que se fossem (ou se um dia chegarem a ser) aplicadas na exatidão de suas previsões seriam revolucionárias do ponto de vista social. Do outro, a constatação de que nossa realidade como país está muito distante deste nível de desenvolvimento social e, aí sim, justificando a construção de um novo sistema jurídico, composto por normas que, mesmo sem tantos contornos humanitários, responderiam ao nosso momento histórico, relacionando-se entre os valores e fatos sociais atuais.

É tão evidente a distorção ou a lacuna que há entre o que a norma apregoa e o que acontece na realidade, que o brasileiro médio já incorporou pela tradição estas diferenças ao conteúdo da própria norma. Exemplo claro disso é o que ocorre entre o descrito no Código Penal e na Lei de Execução Penal em oposição ao Sistema Carcerário da vida real.

Se o Sistema de Progressão das Penas muitas vezes não faz sentido para a sociedade, por abrandar uma pena que, na sua concepção, já seria curta se cumprida no todo – entre outras críticas corriqueiras; por outro lado há a certeza de que o sofrimento causado pela permanência em um sistema carcerário pútrido como o nosso excede, em muito, a simples privação da liberdade imposta. E a carga de “misérias imprevistas”, se não compensam a brandura da pena, podem, por seu turno, transformar o pouco tempo de cumprimento da pena em um castigo muito maior que o previsto pela lei.

Conta-se silenciosamente com o Código Penal interno dos presídios – e sua carga retributiva de Talião – que faz do estuprador vítima de seu próprio delito. Isso, de alguma forma, minoriza a insatisfação da sociedade quanto à discrepância entre a intensidade da pena aplicada quando relacionada ao sofrimento da vítima original.

Ou seja, há a descrença nos princípios norteadores do Sistema Penal e o entendimento de que, tal como está, este sistema não dá certo.

Se a sociedade não acredita (até por não ver na prática) nas suas penas sendo capazes de ressocializar e percebe que a aplicação de suas leis (como são aplicadas e quando são aplicadas) são ineficazes para assegurar a paz social, como devemos nos posicionar?

Devemos manter normas e princípios de grande valor social, nos desenvolvendo como sociedade e lutando com os meios possíveis para que a lei seja efetivamente aplicada, até que atinjamos o ponto em que estas normas estejam respondendo às nossas necessidades?

Ou devemos olhar desapaixonadamente para a realidade que temos (e que pouco reflete deste desenvolvimento social), e buscar novas normas com maior carga de retributividade e que façam maior sentido à sociedade?

Quanto estiver diante de qualquer argumento sobre este tema, pense:

Estamos discutindo a diminuição da Maioridade Penal porque este fator (a responsabilização penal) se relaciona com a delinquência e, consequentemente, diminuiria a criminalidade e violência?

OU

Estamos discutindo a diminuição da Maioridade Penal porque a norma, assim como está posta, não corresponde aos anseios da sociedade, não se relaciona com o fatos sociais atuais e não reflete os valores de nossa sociedade?

Entender isso é criar um cordão sanitário entre uma discussão absolutamente pertinente (para qualquer lado que caminhe, quer seja na alteração quanto na manutenção da norma) e uma conversa maniqueísta orquestrada com o objetivo de arrumar um bode expiatório para um problema social.

Permaneça lúcido e bom debate!

Alethea Lemos Neves

 

O Princípio da Publicidade e a Publicidade como Princípio

Na semana passada o universo jurídico, que normalmente tem sua imagem associada à solenidade de suas atividades e ao hermetismo, próprios dos seus ritos e vocabulário, aproximou-se da sociedade de uma maneira inédita.  Pudemos assistir em tempo real e com detalhes a um julgamento do Tribunal do Júri. Era o Poder Judiciário, personificado por seu órgão de maior apelo popular, adentrando o cotidiano do brasileiro e se mostrando sem reservas.

Com o intuito de reparar a imagem de nossa Justiça no que tange à falta de clareza e transparência de seus atos, é que o magistrado de Guarulhos abriu à transmissão televisiva as sessões que presidiu. Todavia, o argumento maior para tal iniciativa quem nos fornece é a Carta Magna, em seus artigos 5°, LX e 93, IX, com as seguintes dicções:

Artigo 5°, CF: “LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Artigo 93, CF: “IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

A atitude do juiz foi louvável e corajosa, e levou o Princípio Constitucional da Publicidade a limites antes impensáveis. Todavia, esta inovação requer alguma ponderação.

A crítica fácil, e que comumente é feita em relação ao Tribunal do Júri – sobretudo na Era da Informação – diz respeito à comoção pública e ao clamor social, em virtude da matéria que a ele é submetida, e que podem comprometer a isenção de suas decisões. E tais sentimentos experimentados pela sociedade são até simples de serem entendidos. O Tribunal do Júri, fora todas as paixões que acaba por suscitar desde as suas origens, possui outro caráter muito sedutor. Ele é uma parcela do poder do Estado exercido de forma direta pelo Povo. É gente da sociedade fazendo a Justiça.

O problema é que o processo, que para o juiz togado tem seus contornos definidos nos autos, para o Tribunal do Júri começa muito antes da escolha dos sete membros, pois a mídia – muitas vezes agindo de forma irresponsável ou simplesmente respondendo a seu impulso comercial – logo após o delito oferece a denúncia publicamente e já sentencia aquele que escolheu como réu.  E a sentença midiática possui características interessantes, pois tem como juiz a opinião pública e já nasce transitada em julgado, malogrando desta forma o princípio da Presunção da Inocência e contaminando toda a sociedade.

Ainda assim, a despeito de todos estes empecilhos à boa prática da justiça, o instituto do Tribunal do Júri segue respeitado pela sociedade, pronunciando decisões ponderadas e em pouco destoando daquilo que seria esperado do Juiz Togado em situações análogas; ou seja, o senso comum, que acaba sendo a ferramenta decisória do Conselho de Sentença, coincide com os elementos de decisão do juiz.

Entretanto, nesta experiência em análise, o “processo” do Processo que foi julgado pelo Tribunal do Júri sofreu uma considerável interferência não prevista pela lei. Ao invés de sete membros da sociedade compondo o júri havia um oitavo elemento: a própria sociedade.

Neste ponto vale observar que sim, há muito de teatral no papel que os defensores e acusadores desempenham, e que a reação do júri, como plateia,  contribui sobremaneira para os rumos da performance do operador do direito e para o resultado do embate.  Mas, diferentemente dos outros processos decididos no Júri, neste não eram apenas os jurados que precisavam ser encantados e convencidos, mas toda a sociedade brasileira.

Por mais técnicos e experientes que sejam os operadores do direito, não podemos deles esperar a frieza, total isenção e a precisão mecânica; pois tais características, além de sobre-humanas, poriam em risco os interesses da sociedade e do bem comum, que carece da sensibilidade de seus operadores. Desta forma, devemos prever as paixões humanas e vaidades, inerentes ao Homem, cabendo à ética e à moral destes operadores a modulação de seus sentimentos frente às necessidades tão específicas de seu ofício.

Cabe ressaltar que no ato da procuração o cliente roga ao advogado e comunica à sociedade que este, a partir daquele momento, passará a agir por ele; a agir como ele agiria, a ser ele. Um pacto que cumpre o papel de uma consubstanciação. Agora, se no momento em que o advogado tiver que representar o seu papel na defesa do réu – levando em conta a ameaça a bens jurídicos caríssimos que pesa sobre o seu cliente e, diferentemente disso, ele estiver buscando mostrar-se pessoalmente diante da maior vitrine da sociedade contemporânea, qual seja, a Mídia, o acusado, mesmo tendo concordado com a exposição, terá a sua defesa feita de forma efetiva?

https://capinando.blogspot.com.br/2011_01_01_archive.html  – todos os direitos reservados ao autor da imagem

Esta reflexão cabe também para os membros da acusação e para o juiz presidente, e caberia ainda em maiores proporções aos jurados, caso estes também fossem filmados, alterando o rumo de outros aspectos do processo. Ainda que seja evidente que o povo (como um todo) seja o juiz absoluto de qualquer processo – uma das razões de ser do Princípio da Publicidade – é inegável que a descomunal força da Mídia não estava prevista na concepção original do Princípio Constitucional.

Acreditamos que não interessa à boa aplicação da Justiça apenas um minuto a mais que seja de uma pena que tenha sido aplicada a um réu, ainda que culpado, por força de uma defesa que esteve diante das câmeras tendo seu foco desviado da verdadeira razão de lá estar.

Ouviu-se de alguns defensores da transmissão do julgamento que este molde satisfaria a curiosidade da sociedade sobre os ritos do Poder Judiciário. De acordo com as normas constitucionais mencionadas, as audiências são públicas. Não foi este julgamento que inaugurou o Princípio da Publicidade!

Ouviu-se, ainda, que tal demonstração diminuiria a sensação de impunidade que a sociedade brasileira nutre em relação às suas instituições, pois todos estariam VENDO a justiça sendo aplicada ao caso concreto.

Ora, mas não seria mais proveitosa a demonstração da justiça obtida pelo efetivo cumprimento das leis existentes; pela elaboração de leis mais modernas (nos casos em que fosse essa a dificuldade); na composição de um Legislativo mais comprometido e preparado, do que a livre aplicação de um princípio essencial para a sociedade, mas que, nesta intensidade, poderia ameaçar ou sacrificar os direitos de um único indivíduo?

Muito embora cumpra o caráter exemplificativo da Prevenção Geral atribuído às penas; cuide de arrefecer a sensação de impunidade ou satisfaça a curiosidade da sociedade, esta exposição pode comprometer elementos importantes do processo, além de tangenciar aspectos da intimidade do réu. E, em última análise, até mesmo ferir o “interesse social” mencionado no artigo 5°. LX, pois é de interesse social que o processo siga límpido e transparente, não eivado pelo sensacionalismo ou precipitações.

Devemos reconhecer que o avanço tecnológico e a sociedade contemporânea mudam em velocidade muito superior à das normas e princípios jurídicos, cabendo às novas interpretações o ajuste destes às atuais necessidades. Deste modo, sobrevém a pergunta: para que neste novo formato seja concretizado em tons tão intensos o Princípio da Publicidade, não teria sido sacrificado o Princípio da Intimidade, sob o prisma do Réu?

Este artigo não pretende ser a voz definitiva sobre esta experiência inovadora, justamente por mais levantar questões do que respondê-las, cabendo ao tempo e à prática reiterada deste “repaginado Princípio da Publicidade” esta tarefa. Ou, no caso de se verificar uma colisão de Princípios Constitucionais, a uma reinterpretação harmônica destes, visto que podemos estar diante de uma mácula aos direitos individuas do réu quanto tenhamos apenas que adaptar-nos à evolução tecnológica aplicada a um Princípio Constitucional.

Por fim, façamos uma última reflexão:

A Programação da Mídia Televisiva nasce da necessidade da Arte se manifestar em formato audiovisual? Ela nasce da necessidade de se registrar a História, que é escrita em sua fração diária – que vamos chamar de “notícia” – e da necessidade desta fração de História ser partilhada de uma forma rápida e eficiente com a sociedade? Nasce do exercício democrático da dialética e da multiplicidade de opiniões? E, por que não dizer, da necessidade do entretenimento de que precisamos para permanecer existindo?!

Ou, diferentemente disso, a Programação da Mídia Televisiva é aquilo que prende o consumidor diante do aparelho de TV entre um bloco e outro de propaganda comercial – que é o que paga para que a Mídia Televisiva exista?

Se você considerou plausível a última alternativa, nosso Tribunal do Júri passa a ser tão eficiente quanto uma boa “Novela das Oito” ou um filme de “Mocinho e Bandido”, suscitando paixões e desafetos, mexer com a psique humana e promover a catarse nossa de cada dia. Enquanto nos mantemos quietos, cordatos e atentos, entre um bloco de comerciais publicitários e outro, esperando que leiam a sentença do réu, que em verdade não é bandido, até prova em contrário.

Pense nisso.

Alethea Lemos Neves. 

Março de 2013.

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